Todo Mundo É Um Especulador

Michael Goldstein

Primeira publicação em The Bitstein Brief


Há uma tendência em se fazer uma nítida distinção entre operações puramente especulativas e investimento verdadeiramente produtivo. A distinção é apenas de grau. Não há o que se possa denominar de investimento não especulativo. Numa economia em permanente mudança, a ação sempre implica em especulação. Os investimentos podem ser bons ou maus, mas são sempre especulativos. Uma mudança radical nas condições pode fazer com que um investimento considerado perfeitamente seguro se transforme num investimento desastroso.

Ludwig von Mises, Ação Humana

É comum que críticos questionem a racionalidade econômica dos bitcoiners em acumular e guardar bitcoins, alegando que o bitcoin nada mais é do que um “ativo especulativo”. A insinuação é que o bitcoin não tem valor e deriva valor apenas de uma série de golpes ou jogos de tolos. Embora essa atitude presunçosa permita que o crítico se sinta acima de tudo e descarte o bitcoin como uma tecnologia e um ativo abaixo de sua dignidade, tal linguagem o trai, pois essas difamações revelam mal-entendidos do pensamento econômico básico. A realidade simples é que toda ação é especulativa, e todos os ativos são ativos especulativos. A questão que deve ser abordada não é se, mas como devemos especular com bitcoin.

Ação, Incerteza, e Risco

Se o futuro fosse perfeitamente previsível, não haveria necessidade de fazer escolhas econômicas. Não haveria possibilidade de uma escolha impactar o futuro, pois este já estaria predeterminado. O fato de os humanos agirem com a intenção de afetar as condições futuras em seu benefício implica uma incerteza fundamental e inescapável sobre o futuro.

A incerteza existe por dois motivos. Primeiro, não sabemos o suficiente sobre fenômenos naturais para podermos prever todas as condições naturais futuras, e provavelmente nunca o faremos. Segundo, as preferências humanas estão sempre em fluxo. As pessoas mudam a forma como valorizam os bens a cada momento. Novos conhecimentos e experiências moldam suas ideias sobre os melhores meios para atingir determinados fins, ou se desejam ou não determinados fins.

Compreender a incerteza requer diferenciá-la do risco. Em Ação Humana, Ludwig von Mises faz isso explicando os diferentes tipos de probabilidade com os quais os atores devem lidar. Sempre lidamos com conhecimento insuficiente para fazer afirmações definitivas sobre o futuro, mas também nem sempre estamos sem conhecimento algum. Os dois tipos de probabilidade, que ele chama de probabilidade de classe e probabilidade de caso, lidam com o tipo de conhecimento que nos falta.

Mises define probabilidade classe como:

Probabilidade de classe significa o seguinte: sabemos ou presumimos saber tudo sobre o comportamento de uma classe de eventos ou fenômenos; mas, quanto à específicos eventos singulares, não sabemos nada, a não ser que sejam elementos dessa classe.

Quando lançamos um dado, sabemos que há uma chance em seis de um número específico ser lançado, mas não temos conhecimento sobre qual número realmente será sorteado. Da mesma forma, podemos saber a probabilidade de uma doença ou lesão afetar uma população, mas não sabemos com antecedência quem nessa população será afetado. Quando temos conhecimento e certeza suficientes para lidar com essa classe de eventos, estamos lidando com risco. A probabilidade dos resultados é objetiva, calculável e previsível, e tais probabilidades são seguráveis.

Entretanto, não podemos ter esse nível de certeza para todos os eventos, e aqui lidamos com probabilidade de caso e incerteza.

Probabilidade de caso significa: conhecemos alguns dos fatores que determinam o resultado de um evento; mas existem outros fatores que também podem influenciar o resultado e sobre os quais nada sabemos.

A ação humana baseia-se em valores subjetivos e qualitativos, em vez de dados quantitativos mensuráveis. Portanto, é impossível calcular diferentes probabilidades de resultados econômicos. Podemos usar fatores como preferências passadas para ajudar a fazer um julgamento sobre os resultados da ação, mas não podemos usar isso para atribuir frequências calculáveis aos resultados. Mises usa o exemplo de uma partida de futebol. Vitórias passadas de um time podem nos dar motivos para acreditar que ele vencerá novamente, mas isso não garante uma derrota para o azarão. Na verdade, se fosse esse o caso, o jogo seria chato e sem sentido.

Em resumo, o risco lida com eventos cujas frequências podem ser calculadas e é tratado por meio de seguros. Mas a maioria das incertezas que os humanos enfrentam lida com eventos que são únicos para cada circunstância individual e, portanto, não são seguráveis. Devemos usar outros meios para lidar com a incerteza.

Jogos de Azar, Engenharia, e Especulação

Mises identifica três maneiras pelas quais os atores lidam com a incerteza: jogo de azar, engenharia e especulação.

Jogo de azar lida com probabilidade e risco de classe, mas por meio de apostas em um caso individual.

O jogador não sabe nada sobre o evento do qual depende o resultado de sua aposta. Tudo o que ele sabe é a frequência de um resultado favorável de uma série de eventos semelhantes, conhecimento esse inútil para sua empreitada. Ele confia na sorte, que é sua única forma de planejamento.

Um apostador sabe que um número em um dado só sai um sexto das vezes, mas ele aposta que a próxima vez será a certa. Do ponto de vista do segurado, o seguro é uma aposta, porque, embora paguem um prêmio que reflete a frequência com que um evento ruim ocorre, ele pode nunca acontecer de fato, e o prêmio teria sido pago de graça. Todos os dias, as pessoas apostam que não serão atropeladas por um carro ou atingidas por um raio. De certa forma, você nunca pode remover um elemento de aposta da vida (a menos que você seja Phil Ivey).

Por outro lado, se alguém tem conhecimento técnico suficiente para lidar com fenômenos naturais com uma quantidade suficiente de certeza, um ator pode lidar com o futuro por meio da engenharia.

O engenheiro, por outro lado, sabe tudo o que precisa para uma solução tecnicamente satisfatória de seu problema, por exemplo, a construção de uma máquina. Na medida em que tenha alguma incerteza decorrente de algum conhecimento imperfeito, procura eliminá-la adotando margens de segurança. O engenheiro sabe apenas resolver problemas solúveis ou, então, sabe que existem problemas que não podem ser resolvidos no atual estágio de conhecimento. Às vezes, descobre pela experiência adversa que o seu conhecimento era menos completo do que imaginava e que, portanto, deixou de perceber a indeterminação de algumas questões que supunha poder controlar. Tentará então tornar seu conhecimento mais completo. Naturalmente, nunca poderá eliminar completamente o elemento de risco presente na vida humana. Mas, em princípio, opera sempre numa órbita de certeza. Seu objetivo é ter completo controle dos elementos com que lida.

Um ciclista pode nunca saber quando pode sofrer um tombo, mas se ele usar um capacete produzido por um engenheiro competente, a incerteza se sua viagem de bicicleta terminará com sua cabeça rachada no asfalto é drasticamente reduzida, permitindo que ele tenha mais certeza de sua capacidade de chegar onde precisa em segurança.

No entanto, ao lidar com questões que envolvem avaliações de bens por parte das pessoas, os humanos devem envolver-se em especulações:

No mundo real, o agente homem defronta-se com o fato de que seu semelhante age por conta própria. A necessidade de ajustar suas ações às dos outros faz dele um especulador, para quem sucesso e fracasso dependem de sua maior ou menor habilidade em compreender o futuro. Toda ação é uma especulação. No curso da vida humana não há estabilidade e, consequentemente, não há segurança.

As preferências podem mudar por qualquer motivo, ou mesmo sem motivo algum. Um bem valioso hoje pode não ser amanhã, ou vice-versa. Os atores lidam com isso especulando. Eles compram ou vendem bens hoje com base em como acreditam que as condições serão amanhã. Dito isso, essas decisões não são tomadas no vácuo. Os atores usam seu conhecimento sobre o estado atual do mercado, bem como seu conhecimento sobre preferências, crenças, ações passadas, etc., para fazer julgamentos sobre o futuro. Eles estruturam sua produção com base nessas especulações, a fim de tentar concretizar esse futuro, a fim de obter lucro. No entanto, eles lucram apenas se fizerem julgamentos corretos sobre o que as pessoas realmente desejam. Como o futuro é incerto, eles também podem cometer erros empreendedores ao produzir bens com valor inferior ao esperado para os outros e acabar tendo prejuízos. Os empreendedores mais bem-sucedidos são aqueles mais hábeis em antecipar rotineiramente como as pessoas agirão no futuro, enquanto aqueles que não conseguem fazer isso enfrentam prejuízos e podem, eventualmente, falir.

Tanto os lucros quanto as perdas de qualquer ator, por sua vez, servem como oportunidades de aprendizado para todos os atores, pois sinalizam aos outros como devem ajustar seus julgamentos e estruturas de produção para melhor antecipar o futuro e fornecer aos outros os bens de que necessitam. A incerteza e a especulação, portanto, estão na raiz do processo de mercado. É responsabilidade de todos os atores aprender a responder aos sinais de mercado, gerados pelas preferências e ações reveladas das pessoas, se desejarem realizar especulações lucrativas e empreendimentos produtivos que melhorem o futuro para si próprios e para os outros.

Todos os Ativos São Ativos Especulativos

O futuro é sempre incerto, pois não há constantes na ação humana. A especulação é inevitável. Toda ação visa melhorar as condições futuras, mas só podemos especular sobre o que o futuro nos reserva. As preferências mudam, inclusive as nossas. O que queremos hoje ou o que achamos que podemos querer amanhã, podemos não querer quando o amanhã realmente chegar.

Isso significa que, a rigor, todo bem que compramos e vendemos é um “ativo especulativo”. Bitcoin certamente é um “ativo especulativo”, mas lápis, carros e sorvete também o são. Embora você tenha comprado sorvete de baunilha hoje, mais tarde pode descobrir que deseja chocolate ou uma sobremesa completamente diferente. Você não poderia saber disso com antecedência. Você só poderia fazer um julgamento com base no fato de que normalmente deseja sorvete de baunilha.

Além disso, se você estiver especulando sobre um ativo (e sempre está), também estará especulando sobre todos os outros ativos, porque a compra ou venda de um bem exige o custo de oportunidade de não comprar ou vender outro bem.

Aqueles que ridicularizam “ativos especulativos” frequentemente também recorrem ao pejorativo “apostar”. Isso nem sempre é injusto retoricamente, mas, praxeologicamente, é impreciso. Enquanto uma pessoa pode especular sobre um ativo após deliberação sofisticada (como um usuário de bitcoin), e outra simplesmente a partir de uma “dica quente” (como o telespectador médio da CNBC), ambos estão usando o conhecimento de fatores de entrada que podem afetar o resultado do evento.

Lidar com ativos especulativos não é o mesmo que apostar. Como descrito acima, o jogo lida com probabilidade de classe, enquanto a especulação lida com probabilidade de caso. Ao apostar, alguém pode saber tudo sobre as frequências dos eventos, mas esse conhecimento não tem efeito sobre o resultado real. Ao especular, embora não conheçamos todos os fatores que afetam o resultado de um evento, podemos conhecer alguns. Você pode não saber se vai querer sorvete de baunilha, mas sabe do que tende a gostar.

Incerteza e Dinheiro

Como observado anteriormente, um agente que deseja evitar riscos pode adquirir um seguro para lidar com contingências esperadas. No entanto, como a incerteza não é previsível, não há seguro para a incerteza. Em vez disso, os agentes recorrem a um bem específico, o bem mais comercializável, chamado dinheiro.

Em “‘O Rendimento do Dinheiro Mantido’ Reconsiderado”, Hans-Hermann Hoppe escreve:

Diante desse desafio de contingências imprevisíveis, o homem pode passar a valorizar os bens em função de seu grau de comerciabilidade (em vez de seu valor de uso para ele como bens de consumo ou de produção) e considerar a troca também sempre que um bem a ser adquirido for mais comerciável do que aquele a ser entregue, de modo que sua posse facilitaria a aquisição futura de outros bens e serviços direta ou indiretamente úteis. Ou seja, pode surgir uma demanda por meios de troca, i.e., uma demanda por bens valorizados em função de sua comerciabilidade ou revenda.

Ele continua:

Como o dinheiro pode ser empregado para a satisfação instantânea da mais ampla gama de necessidades possíveis, ele proporciona ao seu proprietário a melhor proteção humanamente possível contra a incerteza. Ao reter dinheiro, seu proprietário ganha a satisfação de poder atender instantaneamente, à medida que surgem imprevisivelmente, à mais ampla gama de contingências futuras. O investimento em saldo em dinheiro é um investimento contra a aversão (subjetivamente sentida) à incerteza. Um saldo de caixa maior proporciona maior alívio da aversão à incerteza.

Observe que isso não livra o dinheiro em si da incerteza e da especulação. Quem adquire dinheiro está especulando que os saldos em dinheiro adquiridos serão mais valiosos no futuro do que qualquer investimento atual e que o poder de compra no futuro estará em um nível satisfatório. O bitcoin pode ser um ativo especulativo, mas o dólar americano também o é.

Conclusão

Considerando que todos os ativos são ativos especulativos, incluindo dinheiro, cabe a nós examinar a atividade especulativa com base no conhecimento e nos julgamentos feitos para fazer a especulação, em vez de simplesmente desligar nossas mentes com terminadores de pensamento linguísticos.

No caso do dinheiro, podemos examinar até que ponto as qualidades de um bem permitem que ele resista a diferentes tipos de incerteza, seja por meio de suas propriedades naturais ou da engenharia humana, de modo a ser o mais capaz de alcançar a maior comercialização entre todos os bens. Isso não garante a adoção desse bem monetário, mas nos permite compreender a adoção que ocorre e julgar se a adoção pode ou irá continuar.


Traduzido por Fabio Pereira


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